Hoje chegamos ao final de mais uma semana de homenagens à personalidades da nossa História. À valorosa Rachel de Queiroz, nossa eterna admiração e apreço. Fechamos, então, este ciclo com uma das mais belas crônicas por ela já escritas: Ah, os amigos! Leiam-na e sintam a grandiosidade de suas palavras.
"Sim, amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem
emprego, sem dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o
amigo é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir
trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar a doença. Só não pode se envolver
em assuntos de amor, porque aí deixa de ser amigo; e maior tolice a que
se arrisca a incorrer alguém é misturar amigo com amor.
Amizade e amor são qualidades paralelas na vida de cada um; se conhecem,
até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás, não estou
dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que o namoro, noivado, casamento,
amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer pela sua
impermanência, ou, quando permanentes, pela sua natureza tumultuária,
absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter categoria à parte.
Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e você perde o amigo e terá um
péssimo amante, que sabe todos os seus defeitos, lhe conhece do tempo em que
você não se enfeitava para ele, não lhe escondia suas falhas do corpo e da
alma, e que, portanto sabe de todos os seus pontos fracos. Fica impossível.
A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos camaradas,
colegas, conhecidos cordiais, mas amigos, poucos. E, tendo poucos, poder e
saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre os amigos: cada um há de
ter sua área específica, sua zona própria de influência.
Não vê que cada amigo, por ser único no seu território, não precisa sequer
conhecer os donos dos outros territórios. É que, sendo a nossa alma tão variada
nas exigências, precisamos de amigos de acordo com os diferentes ângulos do
nosso coração. O amigo da comunicação intelectual não pode ser o mesmo amigo da
confiança íntima; o velho companheiro da infância não tem nada a ver com o
precioso camarada adquirido nos anos de maturidade.
E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se coligar
contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta própria, nos
excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros, porque os companheiros
espirituais deles nem sempre correspondem aos nossos. Se você adora fulano
porque toca em suas cordas nostálgicas, contando-lhe lembranças da mocidade
passadas na barranca de um rio em Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates
sobre religião, as intrigas políticas, os negócios, o gosto de recordar os
sambas de Noel Rosa. Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu
compartimento.
Axioma absoluto em assuntos de amizade: amigo é insubstituível. O que um lhe
deu jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para preencher a
área vazia deixada pelo amigo que se foi por morte ou briga. Mas só ocupará
mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem isso é possível. E o melhor
será fechar aquele nicho do coração, dada a dificuldade de encontrar outro ser
vivo que satisfaça ante nós as especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei.
Minha amiga de infância que morreu deixou no meu peito esse santuário vazio.
Respeite seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los
ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é
querida a despeito de todos os nossos defeitos. E nisso está outra
superioridade da amizade sobre o amor: a amizade conhece as nossas falhas e as
tolera e, até mesmo, as encara com condescendência e afeto. Já o amor é só de
extremos e, ou se entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total.
Amigo entende, aguenta, perdoa, "Amigo é pra essas coisas", como diz aquela
cantiga tão bonita.
Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é como
o unicórnio, o animal de que se fala mas não existe. Porque até os bichos têm
amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as almas mantêm sublimadas
as amizades cá de baixo, naquela quintessência de excelências que só o céu pode
dar. "